quinta-feira, 30 de abril de 2020


O fim do mundo

 

A luta contra a fome e pela cidadania dava uma força danada àquele corpo magro, tomado por uma doença fatal, vírus que grudou num organismo com sangue frágil.  Os olhos azuis de Herbert de Souza, o Betinho, ganhavam brilho quando ele falava sobre a necessidade de os brasileiros terem consciência de que havia32 milhões de pessoas que passavam fome no país. Estávamos em dezembro de 1993 e eu, na época repórter da editoria Rio do jornal “O Globo”,  entrevistei o sociólogo, famoso Irmão do Henfil, que desde o início daquele ano vinha chacoalhando o mundo corporativo, os políticos e os cidadãos comuns, com uma campanha para acabar com a fome e a miséria no Brasil.
Quando Betinho se foi, um estudo elaborado pelo Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro divulgou um estudo baseado em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) de 96 a 99. O estudo mostrava que se cada brasileiro fizesse uma contribuição mensal de R$ 10,4 daria para acabar com a fome no país que, à época, já atingia 50 milhões de pessoas.
 Betinho queria que a sociedade se mexesse, pressionasse os dirigentes – "Não é só entregando um quilo de alimento não perecível à porta do teatro que se muda uma situação de miséria. A pressão, a proposta, a criatividade, a mobilização e até a eleição, isso tudo vai ser esperado da sociedade". Sim, de alguma forma, ao eleger um torneiro mecânico para a presidência em 2002, a sociedade pareceu dar esse recado.
 Betinho analisou lucidamente também a relação da agricultura com a fome – "Na luta contra a miséria, a agricultura é fundamental. E a agricultura, a nível federal, não assumiu efetivamente esta questão como seu eixo"...  Se fosse vivo, o sociólogo teria ainda muito mais a reclamar do setor. Uma reportagem publicada hoje no jornal “Valor Econômico” esmiúça uma situação que já conhecemos de sobra, a respeito do poder da bancada ruralista no Congresso.  Deputados que apoiaram a não denúncia contra o presidente são, em sua grande maioria, empresários do agronegócio. E tudo o que querem é acabar com as exigências para licenciamentos ambientais a fim de poderem tocar projetos que vão impactar o meio ambiente muito mais do que já acontece.
 A preocupação de tais empresas, como também já foi largamente debatido por instituições que combatem a pobreza no mundo, é criar um esquema gigante para alimentar as 7 bilhões de pessoas do planeta. Para isso, contam com agrotóxicos em larga escala e, cada vez mais, distanciam o alimento da boca dos pobres. É como diz Ignacy Sachs, ecosocioeconomista francês no documentário “Zugzwang”, de Duto Sperry:
 "O problema não é a falta de alimento, mas a falta de dinheiro para comprar o alimento".
 Betinho faz falta. Ele dizia as coisas de maneira clara, trabalhava com o real.A ONG que criou, Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, que durante algum tempo depois de sua morte, e no período dos governos de Lula e Dilma, fez um pequeno desvio na missão, hoje precisa novamente buscar a solidariedade das pessoas e recolher alimentos. Amanhã (12) vai ter um evento, "Ocup.Ação", cuja entrada será um quilo de alimento não perecível (o endereço é Rua Barão de Tefé 75, Centro do Rio). Os alimentos vão ser doados para os servidores do Estado que estão sem salário por culpa de improbidade administrativa.
 O cenário continua triste, meu caro Betinho. Que o botão vermelho do fim do mundo fique longe de nós osta está correta.
O sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, fundou o Ibase em 1980 e, na década de 1990, tornou-se símbolo de cidadania no Brasil ao liderar a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, conhecida popularmente como a campanha contra a fome. Betinho mobilizou a sociedade brasileira para enfrentar a pobreza e as desigualdades. Hemofílico, morreu de Aids em 9 de agosto de 1997, deixando um exemplo de solidariedade e de luta pela transformação social.


Nenhum comentário:

Postar um comentário